terça-feira, 17 de outubro de 2006

Atlântico


Foto by Anticiklone

Estou de vigia, tenho a noite diante de mim...ou o dia. No meio de tanto breu já nem sei se esta escuridão oceânica é noite a clarear ou dia a escurecer. Não sei as horas...nem importa, apenas interessa o Norte e o Sul, o vento e o mar.
O oceano é negro e a noite insondável. O navio estremece com o rugir das ondas e um gemido assustador sobe das àguas, pelo costado até ao silêncio da alma. Há mais de um dia que a tempestade se levantou...e não há previsão de melhorar. Dizem que as ondas tem doze metros, mas não as vejo. Deste sítio onde me sento e agarro, só sinto o navio rebolar como louco. A proa sobe a pico para depois cair no abismo. De vez em quando olho pela amura e parece-me ver o mar já ali à minha frente, em baixo. Portanto presinto que atrás de mim deve ficar o céu e pelo esforço que faço para caminhar no pavimento inclinado da ponte, calculo que a inclinação deve ser monstruosa.
A borrasca diluviana fustiga o navio sem cadência precisa. A violência é certa mas a dircção das rajadas de gotas vem de todos os lados...até de baixo, marchando ao sabor da ventania ciclónica.
Não há conversas nem palavras, apenas o olhar preocupado do comandante...e os sons aterradores da tempestade.
Quando a ondulação se cava, abre-se um buraco até à raiz do oceano, onde parece ver-se o olhar dos náufragos sepultados, e costados de navios afundados.
Sinto-me um estranho, um fantasma no degredo. Já nem sei como se anda em terra firme, o meu andar já é flutuante e a cada passo, aproximo-me do fundo do mar. Sonho em ir a terra saciar o corpo, mas sei que quando chegar hei-de sentir sempre um eterno desencontro, uma sensação estranha de desadaptação, de chegar sempre tarde ou de partir cedo demais.
Deixo o tempo invadir-me a alma e corroê-la...nenhum pensamento me ocorre excepto aquele em que não quero pensar: “somos um palito no meio do infinito, sozinhos, sem salvação possível. As águas devem estar geladas...Deus pode estar morto e o mar pode ser uma goela sem fundo”.
De vez em quando olho-me fixamente no espelho para me certificar que continuo vivo.
Para a semana já é Natal mas a ponte de um navio, à noite na tempestade, é um lugar de paixão absoluta...onde o amanhã não existe.

Dezembro 2001 – 40°22’N 37°16W
Resquícios de uma tempestade a bordo do "NRP António Enes"