
Foto by Rui Bonito
...nós Açorianos, não temos medo que o mar nos alague nem que a terra nos engula, porque é certo que a Terra é curta... e o Tempo mais curto ainda.
As furnas são nossas.
As pipas do vinho são nossas,
As carroças do peixinho nossas,
O leite das tetas que ordenhamos,
As pontas com poucos faróis,
Os caminhos seculares mal calçados.
Os chafarizes com um tapete de bosta quente cheiram bem.
Vamos revoltar as ilhas: eu tenho lá ossos de pai e mãe
Sujo seria se não acudisse ao chamamento
Vitorino Nemésio
Parte-se com a mala cheia de saudades do que há-de vir, com uma vontade imensa de chegar ao destino.
Parte-se numa viagem pequena mas eterna, tal é o desejo de rever tudo e todos: os lugares, as paisagens, as pessoas...os amigos.
De ver o azul e o verde.
De ver os olhos que os iluminam.
De chegar, ficar e ser azul!
Quando se chega, tudo está igual, mas parece sempre mais bonito, mais azul. Revêm-se lugares e pessoas, matam-se as saudades e rápidamente se esquece tudo o resto, vivendo só o presente e saboreando cada momento o mais que se pode.
São os dias na praia com o sol e os amigos, com a beleza do mar, são os retornos crepusculares da praia e as noites convivendo com amigos e saboreando a frequente estrela cadente.
E é isto que é tão bom e especial?
É isto e muito mais!
É a fusão de um grupo de amigos com uma ilha que tem tudo para lhes dar. Um grupo de pessoas aparentemente com pouco ou nada em comum mas que no fim, nesta ilha azul, se unem e se divertem, pois sabem aproveitar o que ela tem de melhor para lhes oferecer.
Que mais se pode dizer?Num cenário azul e verde, onde mantos de hortências cobrem a terra, o Pico beija o céu, e o mar, ora calmo ora enraivecido, se estende para lá do que os nossos olhos conseguem ver, há alguém que sabe o valor do que o rodeia e faz por o merecer, não se cansando de olhar à sua volta, admirando cada pormenor que vê, cheira ou sente.Pode ter nascido em qualquer parte do mundo, viver ainda mais longe...mas se gostar desta terra e souber apreciá-la, seja de que maneira for, então esse alguém é filho da ilha azul.Então é azul!
Escrito por Lara Barreiros - 1993
Olhar-te um pouco
Enquanto acaba a noite
Enquanto ainda nenhum gesto te magoa
E o mundo for aquilo que sonhares
Nesse lugar só teu
Olhar-te um pouco
Como se fosse sempre
Até ao fim do tempo, até amanhecer
E a luz deixar entrar o mundo inteiro
E o sonho se esconder
Nalgum lugar perdido
Vou procurar sempre por ti
Há sempre no escuro um brilho
Um luar
Nalgum lugar esquecido
Eu vou esperar sempre por ti
Enquanto dormes
Por um momento à noite
É um tempo ausente que te deixa demorar
Sem guerras nem batalhas pra vencer
Nem dias pra rasgar
Eu fico um pouco
Por dentro dos desejos
Por mil caminhos que são mastros e horizontes
Tão livres como estrelas sobre os mares
E atalhos pelos montes
Nalgum lugar perdido
Vou procurar sempre por ti
Há sempre no escuro um brilho
Um luar
Nalgum lugar esquecido
Eu vou esperar sempre por ti.
Mafalda Veiga - dedicado a L.
O tic-tac do coração calara-se derrepente. O ponto luminoso que desenhava uma linha quebrada no monitor suspendera-se, quieto.
Uma linha recta assinalava o instante exacto em que o coração deixara de bater. Do fundo do coma onde estava mergulhado há dias, ouviu distintamente o silêncio das máquinas logo seguido dos alarmes irritantes. Viu-os correrem para a sua cama e prepararem o carro de reanimação. Viu toda a agitação e alvoroço dos seus gestos, em contraste com a absoluta calma que ele experimentava. Sentiu ternura por todos os que ali se preocupavam assim consigo. Apeteceu-lhe dizer-lhes que morrer não era afinal tão difícil.
Estava morto há uns cinco minutos quando chegou a médica. Mesmo de olhos fechados ele via tudo, mesmo morto, ouvia as vozes, sentia tudo e mais extraordinário ainda, conseguia ler-lhes os pensamentos.
Persebeu o que a médica lhe dizia em pensamento: “Vou tentar trazer-te de volta à vida, mas não sei se consigo e nem sei se é isso que queres. Neste instante estás morto e sabes infinitamente mais do que nós. Só tu sabes, mas não me podes dizer, se queres continuar a viver ou se queres ficar em paz. Perdoa-me se isto força a tua vontade”.
Encostou-lhe os eléctrodos ao peito, e deu-lhe uma descarga contínua e profunda. Pareceu-lhe que o peito tinha rebentado, a dor foi atroz e ele gritou por dentro, sem mover a boca. Depois, no silêncio que se tinha feito na sala, recomeçou a ouvir outra vez o mesmo tic-tac monótono de um coração a bater e era o seu.
Ela tinha-lhe interrompido a morte. Havia um destino traçado e ela trocara-lhe as voltas.
in "Não te deixarei Morrer David Crocket" de Miguel Sousa Tavares