sábado, 22 de julho de 2006

Passagem


Foto by Pedro Malheiros

O tic-tac do coração calara-se derrepente. O ponto luminoso que desenhava uma linha quebrada no monitor suspendera-se, quieto.
Uma linha recta assinalava o instante exacto em que o coração deixara de bater. Do fundo do coma onde estava mergulhado há dias, ouviu distintamente o silêncio das máquinas logo seguido dos alarmes irritantes. Viu-os correrem para a sua cama e prepararem o carro de reanimação. Viu toda a agitação e alvoroço dos seus gestos, em contraste com a absoluta calma que ele experimentava. Sentiu ternura por todos os que ali se preocupavam assim consigo. Apeteceu-lhe dizer-lhes que morrer não era afinal tão difícil.
Estava morto há uns cinco minutos quando chegou a médica. Mesmo de olhos fechados ele via tudo, mesmo morto, ouvia as vozes, sentia tudo e mais extraordinário ainda, conseguia ler-lhes os pensamentos.
Persebeu o que a médica lhe dizia em pensamento: “Vou tentar trazer-te de volta à vida, mas não sei se consigo e nem sei se é isso que queres. Neste instante estás morto e sabes infinitamente mais do que nós. Só tu sabes, mas não me podes dizer, se queres continuar a viver ou se queres ficar em paz. Perdoa-me se isto força a tua vontade”.
Encostou-lhe os eléctrodos ao peito, e deu-lhe uma descarga contínua e profunda. Pareceu-lhe que o peito tinha rebentado, a dor foi atroz e ele gritou por dentro, sem mover a boca. Depois, no silêncio que se tinha feito na sala, recomeçou a ouvir outra vez o mesmo tic-tac monótono de um coração a bater e era o seu.
Ela tinha-lhe interrompido a morte. Havia um destino traçado e ela trocara-lhe as voltas.

in "Não te deixarei Morrer David Crocket" de Miguel Sousa Tavares